29 de jan. de 2010

A palavra

A palavra pode ser tola
Se assim for o ouvinte
A palavra é um cubo
Se quadrado for quem escreve.
A palavra pode ser plana
Se for áspero o leitor

A palavra, ela sozinha, ela morre.
Os homens a alimentam.
Os loucos desdobram-nas
E às vezes escolhem uma só
pra repetir
e
repetir

As palavras, repetidas, não mais significam

As palavras, quando a emoção estoura,
Recusam-se a aparecer.
Apertam-se no peito, nos pulmões de quem chora.
Com muito esforço, uma silabinha é cuspida.
Tossida.


Palavra é poesia
Se poeta for você, que lê.

A palavra insiste em pulular
Mesmo quando, sem mais ar pelo nariz,
O enternecido moço diz:
Sem palavras...

20 de jan. de 2010

Que herói...

“É impossível deixar de nutrir algo que se alimenta sozinho. Como não regar um amor que cresce independente? É como não cometer loucuras em um manicômio.”
Era o que pensava nosso herói solidário. Era o que vinha a sua mente em um momento como esses. Que vontade que tinha de gritar, de mostrar a todos o que sentia. Bobo. Não precisava de nada disso. Bastava viver, bastava existir, deslizar. Palavras sempre foram um caminho dificultoso para o rapaz. E por que insistia tanto em se expressar por elas? Desenhava tão bem, tocava tão deliciosamente, ouvia tudo com tanta sensibilidade que seria capaz de causar inveja a um cego. Mesmo assim, sempre, sempre, sempre tentava escrever cartas de amor, sempre tentava externar em frases, letras, contos, poemas, tudo que sentia. Mas nunca passava do começo. Nunca deixava de amassar uma página antes da segunda linha e seguia torturando-se como faz uma tartaruga com sede que tenta atravessar a ponte Rio-Niterói em busca de água que só encontra no outro lado. Feliz e infeliz esse nosso herói. Tinha a felicidade na mão, no peito, na cabeça. E queria pô-la pra fora de todos os jeitos! Mas que mania! Não lhe bastava a tela, não lhe bastavam as teclas do piano, as cordas do violão. Tinha porque tinha que escrever lindas palavras tolas de amor. Ridículo como todos os amantes, escrevia bobeiras numa folha de papel. Autocrítico como nenhum amante, amassava tudo. Até que um dia sua irmã revirou sua lata de lixo. E chorou. Chorou em cântaros, como nunca havia chorado em sua vida. De emoção, por ler coisas tão lindas. De tristeza, por vê-las no lixo. Contou sua desventura ao irmão. Ele, confuso, passou a desentender todo esse negócio de escrita, poemas... e até mesmo passou a duvidar de sua capacidade ao violão, ao piano, ao pincel. Curioso esse nosso herói.

8 de jan. de 2010

Marcos e o velhinho

Marcos, sentado num banco azul-marinho de uma praça enorme, esperava outro dia normal. Lia seu jornal às nove e meia da manhã, com o sol a lhe dourar apenas o lado direito do rosto fino e comprido (o resto de seu corpo estava coberto pela sombra de um cajueiro), quando se sentou ao seu lado um velhinho. Pediu licença, ajeitou seu bonezinho verde-limão e acomodou-se. Marcos, com o canto do olho, dirigiu ao recém-chegado uma avaliação relâmpago: calçava umas sandálias de palha acolchoadas e amarelecidas pelo tempo. Devem ser confortáveis, matutou o jovem. Prosseguiu a avaliação e não pôde deixar de notar os joanetes do tamanho de uma bola de tênis que o moço cultivava. Seus olhos, aos poucos, foram subindo pelas pernas: as canelas mais pareciam as de um colecionador de pelancas. Passou a achar a cara de seu bulldog de 13 anos muito menos feia. Subiu mais um pouquinho e reparou que as rótulas do joelho do senhor estavam tão no lugar quanto as íris do vesgo mais vesgo do universo. Acima, uma daquelas visões tenebrosas dignas de um clímax de um livro chato, em que se lê 400 páginas à espera de alguma pequena emoção e que se revela uma boa de uma perda de tempo, um romance inacabado de um aspirante a escritor que não sabia o que contar: a barriga caía pela cintura, pélvis abaixo.

Extasiado de tanta surpresa malograda, resolveu voltar para o jornal, que também não ajudava muito. Leu sobre um suicídio de uma rica excêntrica, que encheu a piscina de sua casa com suco de laranja e foi nadando pro fundo, até quedar-se sem fôlego. Leu sobre uma bala perdida que resvalou num hidrante, numa medalhinha que estava no peito de uma moça e que foi parar na orelha de um cachorro, já sem força.

- Que mundo louco - matutou novamente.

Voltou ao velho. Ele agora fazia movimentos estranhíssimos, levava os dedos aos joelhos deslocados, descia para as meias finas, voltava ao joelho com rapidez pouco usual para uma idade tão avançada.

Quando Marcos, já incomodado, foi levantando-se para ir embora, o senhor se pronunciou:

- Oh, fique mais um pouco, que mal há em fazer 5 minutinhos de companhia a um pobre coitado como eu?

- Ahn... Estou meio atrasado pro trabalho – Foi a primeira desculpa que lhe veio à mente

- Atrasado? – Fez uma cara de cachorro pidão muito bem ensaiada – Tudo bem, então eu fico aqui sozinho, sem nada pra fazer, sem ninguém pra conversar... – lamuriou-se o perspicaz senhorzinho.

- Tudo bem, eu fico um pouco aqui.

- Oh, ainda existem nobres corações nesse mundo! - exclamou, logo depois de encher os pulmões.

Marcos sentou-se de novo. Passaram-se 5 minutos de um agonizante silêncio, até que o jovem disse:

- Bem, agora vou-me indo mesmo. Até.

- Espere mais um pouco! Você não fuma? – Disse o senhor, enquanto punha a mão em tremelique no bolso direito de sua bermudinha...

- Não, obrigado. – Cuspiu Marcos, afastando-se apressado.

- Ei! – Foi sua última palavra. Quando Marcos virou-se para ver o que era, ouviu um estrondoso baque surdo, som de bala fina penetrando com facilidade a cabeça deteriorada de um velho decrépito.

O jovem começou a suar frio e nada mais fez ao longo do dia além de matutar, rezando para que estivesse num pesadelo fugaz.