20 de dez. de 2010

Da vida

Da vida, a gente leva, no máximo, nada. Só se leva enquanto se vive. Se você leu muito e isso te ajudou a viver, meus parabéns. Se leu por achar que fosse levar a alguma coisa, meus pêsames. A gente não leva nada, repito. Tudo que fazemos tem que ser pra melhorar. A gente não leva nada, repito. A vida é que leva a a gente. Invariavelmente, à morte. Pense bem no que fazer até lá, por que ali vai ser o seu fim. "Pense bem", veja bem, é bem diferente de "pense muito". É que a nossa vida é tão pequenininha, e é tudo que a gente tem.

19 de nov. de 2010

Hoje

Uma coisinha assim intensa
Vem e vai e já se foi
Nunca foi

Sensações planificadas
Que nunca foram nada
E sou eu quem vê de fora
Bate, volta, não aflora

Chora pelo fogo
Da saudade pluvial
Do cigarro sempre aceso

E o reflexo na faca
É muito mais do que uma vida.

10 de set. de 2010

Pixels

- Sabe do que eu tava lembrando, Rosa? daquele dia que a gente tinha ido ao jóquei bem de manhãzinha, com o Roque e a Maria, lembra? Que a gente ficou comendo umas torradinhas ali embaixo antes de ir apostar e que o Roque ganhou uns 5 reais apostando no cavalo de um tal de Roberto Fonseca. Nunca tinha ouvido falar desse cara, e você?
- Também não – Respondeu desinteressada.
- Bons tempos aqueles, né? A gente se divertia com qualquer coisa, era uma delícia. Era tudo bem mais tranquilo, sua mãe ainda tava bem de saúde, não ficava ligando de cinco em cinco minutos, como liga hoje.
- Isso é um pouco de exagero, não? – Toca o telefone – Oi, mãe!
- Hum... Exagero... E não tínhamos quase nenhuma preocupação, não existia acordo ortográfico... Você acredita que um dia desses um amigo meu me retornou uma carta corrigindo todos os "erros" cometidos por mim de acordo com o novo acordo ortográfico? Ele nem deve ter prestado atenção na carta, só deve ter ficado procurando cada trema, cada acento agudo em paroxítona com "e", essas besteiras... você não faz idéééia, o Zé é mesmo encucado com essas coisas. Muito rígido, sabe? Certinho demais.
- Febre, mãe? Desde ontem? iiiiiiiiiih...
- E o Flamengo? Manteve a base, parece que esse ano engata. Entrosamento é muito importante, sabe, Rosa? Em time grande, é um super adianto, os jogadores já sabem o que esperar do companheiro, já sabem o que ele vai fazer com a bola, pra onde correr. Isso faz o time ganhar campeonato, sabe? Entrosamento é tudo nessa vida, em qualquer tipo de relacionamento. Se bem que no nosso não é muito bem assim, né? Quanto mais a gente vive junto, mais a gente se desentrosa. Esquisito, não? Porque a gente não é como o Flamengo?
- Tá, mãe, só preciso resolver umas coisas e já tô indo praí. Quê que você tava dizendo, Beto?
- Nada, não. Sua mãe tá doente?
- Tá, falei pra ela tomar chá de camomila.
- Que porra de chá de camomila, Rosa? Essa merda não funciona pra nada, nunca vai funcionar! Você e essas suas curas naturais... Pelo amor de Deus, um Tylenol é tiro e queda.
- No caso dela, tiro e queda é um perigo.
- Não finge que não me entendeu. Odeio quando você faz isso.
- Quê?
- Nada não. Piranha...
- Hã?!
- Esse nosso peixinho. Parece uma piranha, come tudo que vê pela frente.
- Ah, tá. Amor, eu tô indo ali ver como tá minha mãezinha. Você vai ou fica?
- "Ali"?? Sua mãe mora lááá no Méier, não é ali.
- Que seja. Quer alguma coisa da rua?
- Um pacote com 50 bolas de festa, daquelas de encher.
- Só isso?
- Só. Mas tem que ser vermelha. Não compra branca não, é muito feio. E além disso dá pra ver a baba de quem encheu, é horroroso.
- Tá bom. Mas vai ter alguma festa aqui em casa?
- Não, ué. Você sempre soube que eu gosto de encher essas bolas de ar. Me dá a sensação de que eu tô fazendo alguma coisa de útil, sabe? Que o ar que eu tenho dentro de mim tá sendo guardado em algum lugar.
- E uma bola de festa é um lugar digno pra guardar o seu nobre ar?
- Me diz uma coisa. Você quer que eu pixels peitos?
- Oi??
- Nada não. É só um trocadilho que um amigo fez ontem, eu achei genial.
- Como que é mesmo?
- Deixa pra lá, você não vai entender.
- Você sempre me menospreza. Tô indo, Betinho, fica com Deus.
- Manda um beijo pra sua mãe. Até logo, demora não.
- Vou num pé e volto noutro. Beijo!

Pedantismo literário

O mar, atordoado,
Realiza sua alvura
Em belas ondas
Sem fragrância

A rosa, desmaiada,
Chora o amor
De ostracismo
Do esmerado
Cavalheiro

Reunidas as malvinas
Rezam alvas flores rubras
Repetidas oratórias
De concubinas em anel

Esmerados sejam vós
Em face do altruísta
Que não retumbem-se as faces
Ao orvalho de minh'alma

Tenho toda a certeza
Excluindo-se o título
E essa derradeira estrofe
Que o poema aqui escrito
Contemplado seria
Para qualquer vão contexto
De talento literário.

E tenho dito, salafrários!

Palheiro

Parem de procurar rimas
Ou sentido ou resposta
Nessas linhas sobrepostas.

Desse jeito elas estão
Porque outro meio não existe
De expressar uma expressão

Que encerra-se em si mesma,
ensimesmada de chatices.
Enjoada de Rimbaud,
Dom Quixote ou Ulisses,
Do tempo de meu avô.

E se achou alguma coisa,
Parabéns!
Aí está!
Aí mesmo...
Viu?

6 de set. de 2010

Vagando por aí...

(Esse texto que segue é uma auto-proposta de exercício. Decidi sugerir a mim a seguinte proposta: uma narrativa livre. Mas a liberdade, aqui, consiste mais na aventura do personagem que no modo de escrever. Não vão surgir palavras desconexas do meio do nada. Apenas a trilha que o personagem descreverá seguirá uma livre linha de pensamento que vier à minha cabeça, podendo, por exemplo, domir em Itu e acordar em Londres; entrar no Rebouças e sair no Coliseu. E etc. Divirtam-se e experimentem fazer o mesmo pra ver o que sai! O mais legal é que a cada dia, a cada hora, pode e DEVE sair um texto diferente do q já foi escrito, podendo revelar mtas coisas sobre vc e seu atual estado pra vc mesmo... (nããão, esse não é um exercício de autoajuda nem de psicanálise. é só uma brincadeira saudável.) )

Ainda dormindo, segundos antes de acordar, pensei: abrir os olhos seria uma bela forma de começar o dia. Porém acordei com eles cerrados ainda. Uns 5 misteriosos segundos depois, o barulho de flechas zunindo e tiros de canhão me forçou a abrir as pálpebras antes cerradas. Eis que me vejo no fim do século XIX, no meio de um acampamento cheyenne recém-atacado por brancos ensandecidos em busca de ouro. Vi genitais de índios pendurados em paus, vi crianças de colo mortas no colo de suas mães. Vi mães fora de si, gritando inutilmente com seus filhos para que voltassem à vida. Curiosamente, ouvi minha própria voz a me alertar: "Qual a novidade, meu filho? Você vê pior que isso todo dia."

Ainda perturbado e sem entender meu próprio "conselho", fui conversar com um dos sobreviventes do massacre, algum tempo depois de a situação ter amainado. O ombro do índio a que me dirigi ainda pingava um sangue reluzente e sua feição parecia tão tranquila como se ele estivesse tomando um café-da-manhã corriqueiro. Ainda estranhando tudo, fui ter com ele. Aproximei-me e, quando cheguei bem perto, de repente me vi transportado para uma sala de escritótio bem asseada na Inglaterra do século XXI. O homem ainda estava lá, mas agora ele usava terno, tinha olhos gélidos e uma estranha coloração vermelha no rosto, à semelhança do cheyenne ferido. Falava a mim, em meio a gargalhadas que ressaltavam sua engenhosidade, como se eu fizesse parte de sua empresa há anos. E me contava das estratégias de publicidade infalíveis que ele, genialmente, havia desenvolvido, com base em resultados de pesquisa que anilasavam os principais anseios da população, sua forma de pensar, agir e comprar e toda a relação que levava uma coisa à outra.

O homem havia desenvolvido, a partir de todas conclusões a respeito de sua pesquisa, um forma de fazer um ser humano realmente acreditar que ele precisa de um produto inútil. Qualquer um. Ele seria capaz de convencer um jogador de futebol do Íbis a ter a coleção completa de Sêneca em capa dura em casa. Ou um cozinheiro francês de que o miojo instantâneo é sensacionalmente delicioso e melhor que a comida orgânica que ele faz. Estarrecido e decepcionado com o propósito a que o rapaz havia destinado tão estimada pesquisa, rezei para me desmaterializar e aparecer em outro lugar.

Preces atendidas, vamos para o Rio de Janeiro da década de 60. Ditadura militar rolando solta e eu sentado no sofá de uma casa isolada no topo do Jardim Botânico, com vista maravilhosa para a Lagoa. A discussão era sobre músicos. Músicos revolucionários e alienados. Ainda com os olhos marejados da "viagem", eu não poderia ainda discernir as formas que via na minha frente. Ouvia só as vozes e, aos poucos, fui conseguindo distinguir uma grande cabeleira de costas. Um cabelo curto com olhos grandes e claros. Um outro cabelo curto e negro, com bigodes, barba mal feita e um corpo franzino fazendo gestos e gestos. Havia também, mais recolhido em seu canto, uma cabeça raspada com narizes largos e esporádicos sons. Pois bem. Mal acreditei quando me dei conta de que eu estava entre Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Zé e Gilberto Gil discutindo os caminhos da música brasielira em meio à ditadura e à censura. Não necessariamente nessa ordem, um dizia que era hora de romper com tudo e mandar às favas a censura, escrevendo e gritando palavrões em praça pública. Outro dizia que a poesia poderia passar pelo fino filtro da censura, enquanto Sicrano classificava tal atitude como uma covardia deslavada. Considerando a discussão peculiarmente parecida com tudo que se discute e já se discutiu no mundo, me retirei meio desapontado de ver ordinariedade até em meus maiores ídolos.

Insaciado, incompreendido e incompleto, cansei de vagar e resolvi voltar pra minha vida. Aqui, tudo é fantástico. E normal.

2 de set. de 2010

A última farra de Juan Cagado

Pra vocês que já começaram pensando besteira: não, o apelido de Juan nada tinha a ver com evacuadas escatológicas... Juan era um rapaz de sorte ímpar e era daí que vinha sua alcunha curiosa. Os amigos se impressionavam com sua capacidade quase desengonçada de falar com mulheres lindas, que sempre se interessavam por ele de forma intensa e inexplicável. Vinha principalmente daí a incompreensão de seus chegados. E, como a maioria de nós, os amigos julgavam sorte aquilo que não conseguiam compreender. Assim, Juan Cagado fazia sua fama misteriosa em sua cidade e arredores.

De fala fácil, desenvolta, Juan fazia amizades como quem veste pijamas. Nunca passou mais de uma hora sozinho numa mesa. Sempre vinha alguém lhe acompanhar. E, talvez por falar demais, pouco conheciam de seus anseios mais profundos, de suas agruras passadas, suas desventuras amorosas. Juan não tinha grilos com nada e nem sapos para engolir. Não levava desaforo pra casa simplesmente porque não os catava na rua.

Pois foi numa sexta-feira,
bem alegre e faceira,
como as muitas já vividas,
que Juan entrou calado,
sem olhar nem pras bebidas.

Era um dia como qualquer outro dia excepcional. Uma sexta-feira já traz, em si, pululantes expectativas, travadas pela rotina precedente. Porém nessa, em especial, parecia o céu um pouco leve demais. Há quem jure que sentiu, naquele dia, um leve gosto de madeira misturado pelo ar. Os malucos da cidade estavam mesmo em polvorosa.

As cachaças e os uísques
pareciam hoje ter
multiplicado seu efeito.

E desse jeito, nesse clima, o barzinho da cidade E., que circunda o grande centro, recebia seus fregueses como manda o figurino. Hospedeiro e simpático, Seu Ivo nunca havia sido visto em tamanha excitação:

dentre homens e mulheres,
não escolhia ou hesitava:
só servia muito bem
e para ele isso bastava.

E Juan ali no canto, encostado como sempre, escondido como nunca, provava, pela primeira vez em 30 anos de bar, a capacidade da cozinha de Seu Ivo.

E gostou até demais
Do que veio ao seu prato
Na bandeja o garçom traz
Um lanchinho insensato.
Pois se todos já sabiam
Da alergia de Juan
Muito poucos entendiam
Chegar essa febre vã

Logo hoje, com a gente,
Ele pede camarão.
E se despede (e)ternamente:
Não sou desse mundo, não.

1 de ago. de 2010

Casos de uma noite de verão

(Inspirado no filme "Sonhos eróticos de uma noite de verão", do sempre elucidativo e sempre chato Woody Allen)

Num bosque arredio,
Casando amanhã
Os casais, já previstos,
Estavam assim:

A vida e a Morte
Ébrios sofriam
De nunca dormirem
Em camas iguais

O Tempo e o Espaço
Sempre reclamavam
Pois um sempre mata
O que o outro traz

A Arte e a Perícia,
Tão donos de si,
Se degladiavam:
"Quem somos aqui?"

Até que uma brisa,
Ou um vento mais forte,
O tempo mudou
E troxe outra sorte

De modo que a Vida,
De frente pra Arte,
De pronto falou:
"Por que imitar-te?"
De modo que a Arte,
Sem mal respondeu:
"Eu sem você
É a morte do "eu"

O Espaço e a Perícia,
Teóricos reis,
Nem sabem depois
Se são dois ou são seis

E o Tempo e a Morte,
Sozinhos num canto,
Nem bem por acaso,
Nem bem por engano,
Conformam-se ambos:
"Poderíamos nós
Ter algum outro plano?"

27 de jul. de 2010

Horrostalgia

Não queira ser a ex-diva
Que do alto de seus sessenta
Joga leite condensado
em pequenas rodelas
em seus seios antes rijos
esperando alguém chegar
e, em seu umbigo,

sente as cócegas das formigas.

12 de jul. de 2010

A fazenda de Alberto

Rude, rude, rude, era tudo muito rude nessa época do ano na fazenda de Alberto
Não havia coelhinhos nem cachorros imponentes que atrevessem chegar perto
Lá de fora já se via que uma hora do dia lá de dentro não passava

Era tudo estatiquinho e um pulo no banheiro demorava mil minutos
Na fazenda de Alberto não havia numeral, nem relógio pra contar
Quanto tempo se perdia parado contando as horas

Nem a fome lá havia, pois ficava-se por horas encostado numa árvore e esquecia-se a barriga
Os pintinhos nem ciscavam, pois sabiam que de nada adiantava ir pra lá ou para cá se tornariam ao seu lugar
Vacas não faziam leite, o guardavam em seu corpo, sem data de validade

E as palavras, na fazenda, se estranhavam pelo ar, ninguém precisava mais falar.
Desesperadas, já não tinham mais valor. O tempo não vinha apagá-las nem reescrevê-las.
Se embrenhavam como nós que se auto emaranhavam, pura falta de opção.
Nem "bom dia" mais saía, as palavras impediam.

Esta época do ano era a mesma o ano todo.

Num espaço sem um tempo, é assim que as coisas são. Tudo habita, continua. Nada nasce, nada morre.

A fazenda de Alberto lá ainda permanece.
Paradinha, paradinha.
Tome conta pra você
Não querer chamá-la "minha".

1 de jun. de 2010

A força e a leveza

O mundo era mais leve
Se tivéssemos força

10 de mai. de 2010

Sobre ontem, hoje e amanhã

Um castelo aristocrático
Muito pouco prático
Uma festa no castelo
Muita gente no castelo
Muitos modos no castelo
E uns sapos no castelo

No castelo mais que dois é confusão
Bom dia, como vai, imperatriz?
Respondi, mas eu não quis

Conversas hierárquicas imperam na margem do rio que corta a ponte da porta do saguão.
Invejas no estômago caminham ao peito, e vão à laringe
Mas daí nunca passam

As palavras envolvem e circundam
as outras
Até a origem ser mais fim que começo.
Numa leve levada
balada de maio
eu um dia me vejo
e me ouço bem longe
como se mais fosse menos e...

Peço lágrimas
que meus olhos recusam
d
.e
..r
...r
....amar

29 de abr. de 2010

Castigo

Quem faz do amor recebido
Puro orgulho do ego
Por uma paixão platônica
Um dia se queda cego

14 de abr. de 2010

Roubem-me, tirem-me tudo
Que a preguiça pariu o poema

30 de mar. de 2010

De manhã

Roubaram-me os primeiros suspiros,
Idos

Tomaram-me o apetite,
Fraco

A sede escorreu
Com a água

Roubaram-me os olhos grudados,
Limpos

A fala embromada mostrou-se
Leve

A tosse de sempre não veio,
Presa

E nem meus bocejos vieram,
Soltos

Hoje parece que não acordei
Ou que o sono não me acometeu
Cedo, na cama, hoje eu não sei
Se aquela cabeça era mesmo eu

22 de mar. de 2010

Chuva nas entranhas

Chovia muito, mas muito mesmo. Chuva dessas que vem uma vez a cada três anos. E eu me divertia com o espetáculo (sempre amei chuva, desde quando era uma criança cabeçuda). De dentro de um apartamento em São Paulo, num prédio desses que têm uns vinte por andar, eu olhava bestificado a chuva pela janela. Era uma janela simples, de vidro, com o corrimento travando de vez em quando aqui e ali. Fechei-a bem fechada, não sem antes experimentar alguma dificuldade, e me deitei no sofá que ocupava quase a sala inteira, para uma admiração mais demorada. O que eu sempre gostei da chuva é que ela faz todas as pessoas tomarem decisões diferentes das que tinham planejado previamente. Todos os caminhos são modificados, o trânsito às vezes pára, uma capa de plástico vira peça fundamental e um novo amor pode acontecer num guarda-chuva dividido por dois. Sim, porque a chuva aproxima todos. Fisicamente, é fácil de perceber: todos, invariavelmente, vão em busca de um lugar coberto, esperam a chuva passar e não resta o que fazer senão bater um papo, jogar conversa fora, dar uns beijos, uns abraços. E, para a cabeça, ela traz uma vontade de carinho, uma bondade sem razão. Deve ser o cheiro de terra molhada. A chuva tem um quê de bucólico. A chuva é clássica.
Não há maior solidão do que passar a noite sozinho num quarto de hotel de São Paulo, costuma dizer o meu pai. Há sim. Se estiver chovendo. Eu, que sempre fui chegado a curtir uma solidão de vez em quando, aproveitava a oportunidade única. E lembrava do meu maior amor, que já tinha ido embora. Nunca consegui dizer que meu amor morreu. Amor não morre, vai passear. E sempre volta. Um novo amor nunca substitui nenhum. Amor não substitui amor. Acrescenta.
E lembrava dessa mulher inacreditável que entrara na minha vida anos atrás, anos longínquos dos quais eu praticamente não me recordo. Lembro dela, só dela. O resto é só o resto. Refiz, involuntariamente, todos seus trejeitos, todas suas nuances, seus mínimos movimentos. Vi minha menina passeando ao longe. Como eu gostava de vê-la andar, como era graciosa, nunca fiquei com tanto tesão só de ver alguém caminhando. Lembrei da sua mão, que eu chamava de mão de gordinha. Volta e meia lhe dizia: meu amor, você foi feita pra ser gordinha, mas deu (quase) tudo errado. Suas mãos eram lindas, lindas, lindas. Tal como seus pezinhos, que pareciam esculpidos. De feia, não tinha nada. Comecei a refazer (ai, que perigo) o caminho de seus lábios em meu corpo. Como me beijava deliciosamente, primeiro a boca, depois os braços, os ombros, a camisa deslizando por cima dos meus braços, as calças caindo pelas minhas magras pernas, e seus lábios continuando seu trajeto. Beijava-me o peito, elogiava minha pele, descia pela barriga, estalava meu umbigo, chegava nas entradas e ai, meu Deus que eu não sei quem é, desse jeito eu morro agora mesmo...
E que vida intensa tinha meu amor. Que jeito maravilhoso de se entregar a tudo, de entender tão fácil, de crescer tão leve. Era um adulto bobo, ou uma criança madura, como preferirem. Como dói não poder mais sentir seus braços me apertando, não ver mais seus olhinhos piscando, ter sua pele contra a minha, nossas mãos se entrelaçando, junto com as nossas almas. Como sinto falta das nossas sincronias inacreditáveis, de como passávamos horas sem dizer uma palavra e falávamos juntos qualquer coisa em uníssono.
Mas às vezes penso é que fui muito sortudo, de ter ao menos encontrado essa pessoa, de ter tido um amor para chamar de meu. Quem sabe a convivência nos teria destruído, quem sabe o relacionamento teria esfriado. Ou quem sabe nós seríamos velhinhos adoráveis, sentados um ao lado do outro em uma enorme cadeira de balanço, contentando-nos em balançar juntos quando não tivéssemos mais força para consumir fisicamente nosso amor.

2 de fev. de 2010

Rosas

De bobeiras benfazejas
Se constrói um belo amor
E assim se enveredavam
Joaninha e Seu João
Pelas ruas de São Cosme
Em dia de Damião

Do recato povoado
De mulheres e meninos
Joaninha e Seu João
Contemplavam trapalhadas
Com a graça de um cão

Passeavam vagarosos,
De mãos dadas, sem razão
Cumplicidade mais que plena,
Joaninha e Seu João

Pois por puro entendimento,
Cada um servia o outro,
Dividindo como irmãos.

E num dia sem estrelas,
Numa noite sem luar

Seu João surpreendeu

Joaninha sem respirar

E um dia se passou,
Seu João se acabrunhou

Recolhido em seu canto,
Sem ninguém pra acarinhar,
O velhinho se escusava

De lamentos ou conversas
Que lembrassem sua vida
Que se fora juntamente
Com Joana, pelo ar.

Só vazio, nada mais
Nem um pinto pra piar
Ou uma rosa a exalar
Tirariam o velho moço
Do estupor de sua perda


Por capricho ou outra coisa
Já passados longos anos,
Seu João ensaia a fala
A quem passa caminhando:
Você sabe como faço
Pra não acordar chorando?

29 de jan. de 2010

A palavra

A palavra pode ser tola
Se assim for o ouvinte
A palavra é um cubo
Se quadrado for quem escreve.
A palavra pode ser plana
Se for áspero o leitor

A palavra, ela sozinha, ela morre.
Os homens a alimentam.
Os loucos desdobram-nas
E às vezes escolhem uma só
pra repetir
e
repetir

As palavras, repetidas, não mais significam

As palavras, quando a emoção estoura,
Recusam-se a aparecer.
Apertam-se no peito, nos pulmões de quem chora.
Com muito esforço, uma silabinha é cuspida.
Tossida.


Palavra é poesia
Se poeta for você, que lê.

A palavra insiste em pulular
Mesmo quando, sem mais ar pelo nariz,
O enternecido moço diz:
Sem palavras...

20 de jan. de 2010

Que herói...

“É impossível deixar de nutrir algo que se alimenta sozinho. Como não regar um amor que cresce independente? É como não cometer loucuras em um manicômio.”
Era o que pensava nosso herói solidário. Era o que vinha a sua mente em um momento como esses. Que vontade que tinha de gritar, de mostrar a todos o que sentia. Bobo. Não precisava de nada disso. Bastava viver, bastava existir, deslizar. Palavras sempre foram um caminho dificultoso para o rapaz. E por que insistia tanto em se expressar por elas? Desenhava tão bem, tocava tão deliciosamente, ouvia tudo com tanta sensibilidade que seria capaz de causar inveja a um cego. Mesmo assim, sempre, sempre, sempre tentava escrever cartas de amor, sempre tentava externar em frases, letras, contos, poemas, tudo que sentia. Mas nunca passava do começo. Nunca deixava de amassar uma página antes da segunda linha e seguia torturando-se como faz uma tartaruga com sede que tenta atravessar a ponte Rio-Niterói em busca de água que só encontra no outro lado. Feliz e infeliz esse nosso herói. Tinha a felicidade na mão, no peito, na cabeça. E queria pô-la pra fora de todos os jeitos! Mas que mania! Não lhe bastava a tela, não lhe bastavam as teclas do piano, as cordas do violão. Tinha porque tinha que escrever lindas palavras tolas de amor. Ridículo como todos os amantes, escrevia bobeiras numa folha de papel. Autocrítico como nenhum amante, amassava tudo. Até que um dia sua irmã revirou sua lata de lixo. E chorou. Chorou em cântaros, como nunca havia chorado em sua vida. De emoção, por ler coisas tão lindas. De tristeza, por vê-las no lixo. Contou sua desventura ao irmão. Ele, confuso, passou a desentender todo esse negócio de escrita, poemas... e até mesmo passou a duvidar de sua capacidade ao violão, ao piano, ao pincel. Curioso esse nosso herói.

8 de jan. de 2010

Marcos e o velhinho

Marcos, sentado num banco azul-marinho de uma praça enorme, esperava outro dia normal. Lia seu jornal às nove e meia da manhã, com o sol a lhe dourar apenas o lado direito do rosto fino e comprido (o resto de seu corpo estava coberto pela sombra de um cajueiro), quando se sentou ao seu lado um velhinho. Pediu licença, ajeitou seu bonezinho verde-limão e acomodou-se. Marcos, com o canto do olho, dirigiu ao recém-chegado uma avaliação relâmpago: calçava umas sandálias de palha acolchoadas e amarelecidas pelo tempo. Devem ser confortáveis, matutou o jovem. Prosseguiu a avaliação e não pôde deixar de notar os joanetes do tamanho de uma bola de tênis que o moço cultivava. Seus olhos, aos poucos, foram subindo pelas pernas: as canelas mais pareciam as de um colecionador de pelancas. Passou a achar a cara de seu bulldog de 13 anos muito menos feia. Subiu mais um pouquinho e reparou que as rótulas do joelho do senhor estavam tão no lugar quanto as íris do vesgo mais vesgo do universo. Acima, uma daquelas visões tenebrosas dignas de um clímax de um livro chato, em que se lê 400 páginas à espera de alguma pequena emoção e que se revela uma boa de uma perda de tempo, um romance inacabado de um aspirante a escritor que não sabia o que contar: a barriga caía pela cintura, pélvis abaixo.

Extasiado de tanta surpresa malograda, resolveu voltar para o jornal, que também não ajudava muito. Leu sobre um suicídio de uma rica excêntrica, que encheu a piscina de sua casa com suco de laranja e foi nadando pro fundo, até quedar-se sem fôlego. Leu sobre uma bala perdida que resvalou num hidrante, numa medalhinha que estava no peito de uma moça e que foi parar na orelha de um cachorro, já sem força.

- Que mundo louco - matutou novamente.

Voltou ao velho. Ele agora fazia movimentos estranhíssimos, levava os dedos aos joelhos deslocados, descia para as meias finas, voltava ao joelho com rapidez pouco usual para uma idade tão avançada.

Quando Marcos, já incomodado, foi levantando-se para ir embora, o senhor se pronunciou:

- Oh, fique mais um pouco, que mal há em fazer 5 minutinhos de companhia a um pobre coitado como eu?

- Ahn... Estou meio atrasado pro trabalho – Foi a primeira desculpa que lhe veio à mente

- Atrasado? – Fez uma cara de cachorro pidão muito bem ensaiada – Tudo bem, então eu fico aqui sozinho, sem nada pra fazer, sem ninguém pra conversar... – lamuriou-se o perspicaz senhorzinho.

- Tudo bem, eu fico um pouco aqui.

- Oh, ainda existem nobres corações nesse mundo! - exclamou, logo depois de encher os pulmões.

Marcos sentou-se de novo. Passaram-se 5 minutos de um agonizante silêncio, até que o jovem disse:

- Bem, agora vou-me indo mesmo. Até.

- Espere mais um pouco! Você não fuma? – Disse o senhor, enquanto punha a mão em tremelique no bolso direito de sua bermudinha...

- Não, obrigado. – Cuspiu Marcos, afastando-se apressado.

- Ei! – Foi sua última palavra. Quando Marcos virou-se para ver o que era, ouviu um estrondoso baque surdo, som de bala fina penetrando com facilidade a cabeça deteriorada de um velho decrépito.

O jovem começou a suar frio e nada mais fez ao longo do dia além de matutar, rezando para que estivesse num pesadelo fugaz.