30 de mar. de 2010

De manhã

Roubaram-me os primeiros suspiros,
Idos

Tomaram-me o apetite,
Fraco

A sede escorreu
Com a água

Roubaram-me os olhos grudados,
Limpos

A fala embromada mostrou-se
Leve

A tosse de sempre não veio,
Presa

E nem meus bocejos vieram,
Soltos

Hoje parece que não acordei
Ou que o sono não me acometeu
Cedo, na cama, hoje eu não sei
Se aquela cabeça era mesmo eu

22 de mar. de 2010

Chuva nas entranhas

Chovia muito, mas muito mesmo. Chuva dessas que vem uma vez a cada três anos. E eu me divertia com o espetáculo (sempre amei chuva, desde quando era uma criança cabeçuda). De dentro de um apartamento em São Paulo, num prédio desses que têm uns vinte por andar, eu olhava bestificado a chuva pela janela. Era uma janela simples, de vidro, com o corrimento travando de vez em quando aqui e ali. Fechei-a bem fechada, não sem antes experimentar alguma dificuldade, e me deitei no sofá que ocupava quase a sala inteira, para uma admiração mais demorada. O que eu sempre gostei da chuva é que ela faz todas as pessoas tomarem decisões diferentes das que tinham planejado previamente. Todos os caminhos são modificados, o trânsito às vezes pára, uma capa de plástico vira peça fundamental e um novo amor pode acontecer num guarda-chuva dividido por dois. Sim, porque a chuva aproxima todos. Fisicamente, é fácil de perceber: todos, invariavelmente, vão em busca de um lugar coberto, esperam a chuva passar e não resta o que fazer senão bater um papo, jogar conversa fora, dar uns beijos, uns abraços. E, para a cabeça, ela traz uma vontade de carinho, uma bondade sem razão. Deve ser o cheiro de terra molhada. A chuva tem um quê de bucólico. A chuva é clássica.
Não há maior solidão do que passar a noite sozinho num quarto de hotel de São Paulo, costuma dizer o meu pai. Há sim. Se estiver chovendo. Eu, que sempre fui chegado a curtir uma solidão de vez em quando, aproveitava a oportunidade única. E lembrava do meu maior amor, que já tinha ido embora. Nunca consegui dizer que meu amor morreu. Amor não morre, vai passear. E sempre volta. Um novo amor nunca substitui nenhum. Amor não substitui amor. Acrescenta.
E lembrava dessa mulher inacreditável que entrara na minha vida anos atrás, anos longínquos dos quais eu praticamente não me recordo. Lembro dela, só dela. O resto é só o resto. Refiz, involuntariamente, todos seus trejeitos, todas suas nuances, seus mínimos movimentos. Vi minha menina passeando ao longe. Como eu gostava de vê-la andar, como era graciosa, nunca fiquei com tanto tesão só de ver alguém caminhando. Lembrei da sua mão, que eu chamava de mão de gordinha. Volta e meia lhe dizia: meu amor, você foi feita pra ser gordinha, mas deu (quase) tudo errado. Suas mãos eram lindas, lindas, lindas. Tal como seus pezinhos, que pareciam esculpidos. De feia, não tinha nada. Comecei a refazer (ai, que perigo) o caminho de seus lábios em meu corpo. Como me beijava deliciosamente, primeiro a boca, depois os braços, os ombros, a camisa deslizando por cima dos meus braços, as calças caindo pelas minhas magras pernas, e seus lábios continuando seu trajeto. Beijava-me o peito, elogiava minha pele, descia pela barriga, estalava meu umbigo, chegava nas entradas e ai, meu Deus que eu não sei quem é, desse jeito eu morro agora mesmo...
E que vida intensa tinha meu amor. Que jeito maravilhoso de se entregar a tudo, de entender tão fácil, de crescer tão leve. Era um adulto bobo, ou uma criança madura, como preferirem. Como dói não poder mais sentir seus braços me apertando, não ver mais seus olhinhos piscando, ter sua pele contra a minha, nossas mãos se entrelaçando, junto com as nossas almas. Como sinto falta das nossas sincronias inacreditáveis, de como passávamos horas sem dizer uma palavra e falávamos juntos qualquer coisa em uníssono.
Mas às vezes penso é que fui muito sortudo, de ter ao menos encontrado essa pessoa, de ter tido um amor para chamar de meu. Quem sabe a convivência nos teria destruído, quem sabe o relacionamento teria esfriado. Ou quem sabe nós seríamos velhinhos adoráveis, sentados um ao lado do outro em uma enorme cadeira de balanço, contentando-nos em balançar juntos quando não tivéssemos mais força para consumir fisicamente nosso amor.