10 de set. de 2010

Pixels

- Sabe do que eu tava lembrando, Rosa? daquele dia que a gente tinha ido ao jóquei bem de manhãzinha, com o Roque e a Maria, lembra? Que a gente ficou comendo umas torradinhas ali embaixo antes de ir apostar e que o Roque ganhou uns 5 reais apostando no cavalo de um tal de Roberto Fonseca. Nunca tinha ouvido falar desse cara, e você?
- Também não – Respondeu desinteressada.
- Bons tempos aqueles, né? A gente se divertia com qualquer coisa, era uma delícia. Era tudo bem mais tranquilo, sua mãe ainda tava bem de saúde, não ficava ligando de cinco em cinco minutos, como liga hoje.
- Isso é um pouco de exagero, não? – Toca o telefone – Oi, mãe!
- Hum... Exagero... E não tínhamos quase nenhuma preocupação, não existia acordo ortográfico... Você acredita que um dia desses um amigo meu me retornou uma carta corrigindo todos os "erros" cometidos por mim de acordo com o novo acordo ortográfico? Ele nem deve ter prestado atenção na carta, só deve ter ficado procurando cada trema, cada acento agudo em paroxítona com "e", essas besteiras... você não faz idéééia, o Zé é mesmo encucado com essas coisas. Muito rígido, sabe? Certinho demais.
- Febre, mãe? Desde ontem? iiiiiiiiiih...
- E o Flamengo? Manteve a base, parece que esse ano engata. Entrosamento é muito importante, sabe, Rosa? Em time grande, é um super adianto, os jogadores já sabem o que esperar do companheiro, já sabem o que ele vai fazer com a bola, pra onde correr. Isso faz o time ganhar campeonato, sabe? Entrosamento é tudo nessa vida, em qualquer tipo de relacionamento. Se bem que no nosso não é muito bem assim, né? Quanto mais a gente vive junto, mais a gente se desentrosa. Esquisito, não? Porque a gente não é como o Flamengo?
- Tá, mãe, só preciso resolver umas coisas e já tô indo praí. Quê que você tava dizendo, Beto?
- Nada, não. Sua mãe tá doente?
- Tá, falei pra ela tomar chá de camomila.
- Que porra de chá de camomila, Rosa? Essa merda não funciona pra nada, nunca vai funcionar! Você e essas suas curas naturais... Pelo amor de Deus, um Tylenol é tiro e queda.
- No caso dela, tiro e queda é um perigo.
- Não finge que não me entendeu. Odeio quando você faz isso.
- Quê?
- Nada não. Piranha...
- Hã?!
- Esse nosso peixinho. Parece uma piranha, come tudo que vê pela frente.
- Ah, tá. Amor, eu tô indo ali ver como tá minha mãezinha. Você vai ou fica?
- "Ali"?? Sua mãe mora lááá no Méier, não é ali.
- Que seja. Quer alguma coisa da rua?
- Um pacote com 50 bolas de festa, daquelas de encher.
- Só isso?
- Só. Mas tem que ser vermelha. Não compra branca não, é muito feio. E além disso dá pra ver a baba de quem encheu, é horroroso.
- Tá bom. Mas vai ter alguma festa aqui em casa?
- Não, ué. Você sempre soube que eu gosto de encher essas bolas de ar. Me dá a sensação de que eu tô fazendo alguma coisa de útil, sabe? Que o ar que eu tenho dentro de mim tá sendo guardado em algum lugar.
- E uma bola de festa é um lugar digno pra guardar o seu nobre ar?
- Me diz uma coisa. Você quer que eu pixels peitos?
- Oi??
- Nada não. É só um trocadilho que um amigo fez ontem, eu achei genial.
- Como que é mesmo?
- Deixa pra lá, você não vai entender.
- Você sempre me menospreza. Tô indo, Betinho, fica com Deus.
- Manda um beijo pra sua mãe. Até logo, demora não.
- Vou num pé e volto noutro. Beijo!

Pedantismo literário

O mar, atordoado,
Realiza sua alvura
Em belas ondas
Sem fragrância

A rosa, desmaiada,
Chora o amor
De ostracismo
Do esmerado
Cavalheiro

Reunidas as malvinas
Rezam alvas flores rubras
Repetidas oratórias
De concubinas em anel

Esmerados sejam vós
Em face do altruísta
Que não retumbem-se as faces
Ao orvalho de minh'alma

Tenho toda a certeza
Excluindo-se o título
E essa derradeira estrofe
Que o poema aqui escrito
Contemplado seria
Para qualquer vão contexto
De talento literário.

E tenho dito, salafrários!

Palheiro

Parem de procurar rimas
Ou sentido ou resposta
Nessas linhas sobrepostas.

Desse jeito elas estão
Porque outro meio não existe
De expressar uma expressão

Que encerra-se em si mesma,
ensimesmada de chatices.
Enjoada de Rimbaud,
Dom Quixote ou Ulisses,
Do tempo de meu avô.

E se achou alguma coisa,
Parabéns!
Aí está!
Aí mesmo...
Viu?

6 de set. de 2010

Vagando por aí...

(Esse texto que segue é uma auto-proposta de exercício. Decidi sugerir a mim a seguinte proposta: uma narrativa livre. Mas a liberdade, aqui, consiste mais na aventura do personagem que no modo de escrever. Não vão surgir palavras desconexas do meio do nada. Apenas a trilha que o personagem descreverá seguirá uma livre linha de pensamento que vier à minha cabeça, podendo, por exemplo, domir em Itu e acordar em Londres; entrar no Rebouças e sair no Coliseu. E etc. Divirtam-se e experimentem fazer o mesmo pra ver o que sai! O mais legal é que a cada dia, a cada hora, pode e DEVE sair um texto diferente do q já foi escrito, podendo revelar mtas coisas sobre vc e seu atual estado pra vc mesmo... (nããão, esse não é um exercício de autoajuda nem de psicanálise. é só uma brincadeira saudável.) )

Ainda dormindo, segundos antes de acordar, pensei: abrir os olhos seria uma bela forma de começar o dia. Porém acordei com eles cerrados ainda. Uns 5 misteriosos segundos depois, o barulho de flechas zunindo e tiros de canhão me forçou a abrir as pálpebras antes cerradas. Eis que me vejo no fim do século XIX, no meio de um acampamento cheyenne recém-atacado por brancos ensandecidos em busca de ouro. Vi genitais de índios pendurados em paus, vi crianças de colo mortas no colo de suas mães. Vi mães fora de si, gritando inutilmente com seus filhos para que voltassem à vida. Curiosamente, ouvi minha própria voz a me alertar: "Qual a novidade, meu filho? Você vê pior que isso todo dia."

Ainda perturbado e sem entender meu próprio "conselho", fui conversar com um dos sobreviventes do massacre, algum tempo depois de a situação ter amainado. O ombro do índio a que me dirigi ainda pingava um sangue reluzente e sua feição parecia tão tranquila como se ele estivesse tomando um café-da-manhã corriqueiro. Ainda estranhando tudo, fui ter com ele. Aproximei-me e, quando cheguei bem perto, de repente me vi transportado para uma sala de escritótio bem asseada na Inglaterra do século XXI. O homem ainda estava lá, mas agora ele usava terno, tinha olhos gélidos e uma estranha coloração vermelha no rosto, à semelhança do cheyenne ferido. Falava a mim, em meio a gargalhadas que ressaltavam sua engenhosidade, como se eu fizesse parte de sua empresa há anos. E me contava das estratégias de publicidade infalíveis que ele, genialmente, havia desenvolvido, com base em resultados de pesquisa que anilasavam os principais anseios da população, sua forma de pensar, agir e comprar e toda a relação que levava uma coisa à outra.

O homem havia desenvolvido, a partir de todas conclusões a respeito de sua pesquisa, um forma de fazer um ser humano realmente acreditar que ele precisa de um produto inútil. Qualquer um. Ele seria capaz de convencer um jogador de futebol do Íbis a ter a coleção completa de Sêneca em capa dura em casa. Ou um cozinheiro francês de que o miojo instantâneo é sensacionalmente delicioso e melhor que a comida orgânica que ele faz. Estarrecido e decepcionado com o propósito a que o rapaz havia destinado tão estimada pesquisa, rezei para me desmaterializar e aparecer em outro lugar.

Preces atendidas, vamos para o Rio de Janeiro da década de 60. Ditadura militar rolando solta e eu sentado no sofá de uma casa isolada no topo do Jardim Botânico, com vista maravilhosa para a Lagoa. A discussão era sobre músicos. Músicos revolucionários e alienados. Ainda com os olhos marejados da "viagem", eu não poderia ainda discernir as formas que via na minha frente. Ouvia só as vozes e, aos poucos, fui conseguindo distinguir uma grande cabeleira de costas. Um cabelo curto com olhos grandes e claros. Um outro cabelo curto e negro, com bigodes, barba mal feita e um corpo franzino fazendo gestos e gestos. Havia também, mais recolhido em seu canto, uma cabeça raspada com narizes largos e esporádicos sons. Pois bem. Mal acreditei quando me dei conta de que eu estava entre Caetano Veloso, Chico Buarque, Tom Zé e Gilberto Gil discutindo os caminhos da música brasielira em meio à ditadura e à censura. Não necessariamente nessa ordem, um dizia que era hora de romper com tudo e mandar às favas a censura, escrevendo e gritando palavrões em praça pública. Outro dizia que a poesia poderia passar pelo fino filtro da censura, enquanto Sicrano classificava tal atitude como uma covardia deslavada. Considerando a discussão peculiarmente parecida com tudo que se discute e já se discutiu no mundo, me retirei meio desapontado de ver ordinariedade até em meus maiores ídolos.

Insaciado, incompreendido e incompleto, cansei de vagar e resolvi voltar pra minha vida. Aqui, tudo é fantástico. E normal.

2 de set. de 2010

A última farra de Juan Cagado

Pra vocês que já começaram pensando besteira: não, o apelido de Juan nada tinha a ver com evacuadas escatológicas... Juan era um rapaz de sorte ímpar e era daí que vinha sua alcunha curiosa. Os amigos se impressionavam com sua capacidade quase desengonçada de falar com mulheres lindas, que sempre se interessavam por ele de forma intensa e inexplicável. Vinha principalmente daí a incompreensão de seus chegados. E, como a maioria de nós, os amigos julgavam sorte aquilo que não conseguiam compreender. Assim, Juan Cagado fazia sua fama misteriosa em sua cidade e arredores.

De fala fácil, desenvolta, Juan fazia amizades como quem veste pijamas. Nunca passou mais de uma hora sozinho numa mesa. Sempre vinha alguém lhe acompanhar. E, talvez por falar demais, pouco conheciam de seus anseios mais profundos, de suas agruras passadas, suas desventuras amorosas. Juan não tinha grilos com nada e nem sapos para engolir. Não levava desaforo pra casa simplesmente porque não os catava na rua.

Pois foi numa sexta-feira,
bem alegre e faceira,
como as muitas já vividas,
que Juan entrou calado,
sem olhar nem pras bebidas.

Era um dia como qualquer outro dia excepcional. Uma sexta-feira já traz, em si, pululantes expectativas, travadas pela rotina precedente. Porém nessa, em especial, parecia o céu um pouco leve demais. Há quem jure que sentiu, naquele dia, um leve gosto de madeira misturado pelo ar. Os malucos da cidade estavam mesmo em polvorosa.

As cachaças e os uísques
pareciam hoje ter
multiplicado seu efeito.

E desse jeito, nesse clima, o barzinho da cidade E., que circunda o grande centro, recebia seus fregueses como manda o figurino. Hospedeiro e simpático, Seu Ivo nunca havia sido visto em tamanha excitação:

dentre homens e mulheres,
não escolhia ou hesitava:
só servia muito bem
e para ele isso bastava.

E Juan ali no canto, encostado como sempre, escondido como nunca, provava, pela primeira vez em 30 anos de bar, a capacidade da cozinha de Seu Ivo.

E gostou até demais
Do que veio ao seu prato
Na bandeja o garçom traz
Um lanchinho insensato.
Pois se todos já sabiam
Da alergia de Juan
Muito poucos entendiam
Chegar essa febre vã

Logo hoje, com a gente,
Ele pede camarão.
E se despede (e)ternamente:
Não sou desse mundo, não.